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Dica Cinestória #3 - O enigma de Kaspar Hauser

  • Foto do escritor: Projeto Cinestória
    Projeto Cinestória
  • 19 de out. de 2020
  • 5 min de leitura

*Texto publicado originalmente no antigo blog do Cinestória em 10 de abril de 2017.


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“As pessoas são como lobos para mim!”. Uma frase bastante curiosa de uma personagem de um filme igualmente curioso. A personagem? Kaspar Hauser, um jovem que nunca teve contato com outros seres humanos (exceto um senhor que o manteve vivo), que é abandonado no centro de uma cidadezinha da Alemanha no século XIX.


O filme? O Enigma de Kaspar Hauser, lançado em 1974 e dirigido pelo importante e influente cineasta alemão Werner Herzog. Mas por que essa frase de nossa personagem principal, envolta em dramaticidade, é tão instigante? Basicamente por conseguir retratar a relação entre o homem, enquanto um ser natural e puro e a sociedade, enquanto um conjunto de códigos, princípios e preceitos.


O Enigma de Kaspar Hauser, cujo título original é Jeder Für sich und Gott gegen alle (“Cada um por si e Deus contra todos”, em tradução livre), levanta uma série de questões filosóficas, sociológicas, pedagógicas e mesmo linguísticas. É um filme extremamente bem dirigido, de aspectos estéticos sofisticados (vê-se pela trilha sonora e pelos cenários) e que, acima de tudo, nos faz pensar sobre como nossos códigos sociais, culturais, linguísticos, etc. determinam os nossos comportamentos e as nossas crenças e como nós os reproduzimos sem nos dar conta acerca de seus fundamentos e justificações. Kaspar Hauser sintetiza o estranhamento do indivíduo natural frente a uma estrutura social extremamente complexa e corrompida; sintetiza a incompreensão do desconhecido, a incompreensão da abstração, algo que parece tão natural para nós, condicionados por nosso meio, por nossa educação formal, mas que para a personagem é algo quase sem sentido. A noção de cultura, conceitos metafísicos, como a própria ideia de Deus, são elementos que a mente de Kaspar Hauser não consegue captar.


Mas qual a narrativa do filme, qual a história contada? O filme inicia mostrando um jovem acorrentado em uma masmorra brincando com um cavalo de madeira, sem ter qualquer espécie de contato com o mundo externo. A única relação que esse jovem mantém é com um misterioso homem de capa preta que o alimenta. Esse misterioso homem ensina o jovem a escrever seu próprio nome em um papel, “Kaspar Hauser”, e, em seguida o leva até uma cidade próxima e o abandona na praça central. Kaspar Hauser, que mal sabe andar, permanece imóvel por um bom tempo gerando perplexidade nos moradores locais. Após uma abordagem, os moradores percebem que o jovem não é um sujeito habitual e resolvem deixá-lo vivendo em uma torre. Com o passar do tempo, ao perceberem que o jovem não é violento e se mostra inteligente e capaz de aprender, uma família fica responsável pela sua educação. Assim, Kaspar Hauser começa a aprender hábitos simples, regras de conduta que regem a vida em comunidade e, como consequência, começa a aprender a viver naquilo que chamamos sociedade (coisa que muito o intriga). Kaspar Hauser, porém, tem uma grande dificuldade em aprender algumas convenções sociais, como ciência, política, religião, etc., embora seja bastante hábil em aprender tarefas manuais e até mesmo a tocar piano. Essas dificuldades em aprender determinadas convenções sociais acabam fazendo com que Kaspar Hauser se torne uma figura indesejável e perigosa para algumas pessoas, uma vez que começa a questionar elementos básicos das estruturas que condicionam nossa vida, o que leva ao desfecho da trama.


O Enigma de Kasper Hauser, como já indicado, é uma obra que pode ser utilizada para suscitar várias discussões. Cito três aspectos que podem ser trabalhados em sala de aula tendo o filme como apoio: (1) a capacidade de aprendizagem de uma linguagem e as fontes de nosso conhecimento; (2) a teoria dos ídolos de Francis Bacon e o modo como a sociedade pode criar artificialidades que obstruem e impedem o desenvolvimento de um pensamento e de uma ciência rigorosa; e, principalmente, (3) o homem natural e a sociedade na Filosofia Política.


Discutir em detalhes esses aspectos certamente necessitaria de muito espaço (e teria outros objetivos), porém, para retomar e fazer com a frase inicial desse pequeno texto tenha significado, podemos tomar Kaspar Hauser como o estereótipo do “Bom selvagem” de Jean-Jacques Rousseau, filósofo genebriano do século XVIII. Quando ouvimos Kaspar Hauser dizer que “As pessoas são como lobos para mim!”, imediatamente nos remetemos ao Estado de Natureza de Rousseau e dos contratualistas, um momento hipotético da história da sociedade humana que precederia o Estado Civil. No Estado de Natureza, o homem seria livre, utilizaria a razão e o julgamento da maneira que achasse adequada, não estando comprometido com leis e normas que regeriam o seu comportamento, exceto as da própria natureza. O homem seguiria apenas a sua vontade. Não haveria injustiça na natureza, porque por definição a natureza é simplesmente justa. A injustiça, a desigualdade, a maldade são fenômenos estritamente sociais. Nessa linha de pensamento, temos a máxima da filosofia de Rousseau que diz que “o homem é bom por natureza, a sociedade que o corrompe”.


A pureza de Kaspar Hauser, seu desconhecimento da maldade, da injustiça e das artimanhas da sociedade humana, fazem com que ele sofra consequências trágicas. Kaspar Hauser não é corrompido pela sociedade e isso é fatal. Ele mantém suas diferenças, não aceita as convenções sociais simplesmente porque são convenções sociais, mas busca receber explicações que tenham fundamentos aceitáveis, como por exemplo, quando ele pergunta à governanta da casa onde ele passa a viver porque é permitido às mulheres apenas fiar e cozinhar. Ele não se satisfaz com a resposta dada e parece sequer encontrar uma boa resposta para questões desse tipo no contexto histórico e social em que está inserido.


O desfecho da história de Kaspar Hauser remete, também, a uma discussão sobre o modo como nos relacionamos com o diferente. Muitas vezes, até mesmo inconscientemente, nos comportamos de maneira em que o que é diferente é uma ameaça, algo que nos tira da zona de conforto e que, como consequência, deve ou ser eliminado definitivamente ou ser retirado da nossa visão. A sociedade humana faz isso corriqueiramente, sem refletir sobre o fato de que talvez a ameaça maior não seja a diferença, mas nós mesmos, nossos próprios pensamentos e modos de viver. Seja como for, O Enigma de Kaspar Hauser é uma obra fantástica, belíssima e uma dica certeira para quem quer um filme com qualidade e com elementos para questionar e refletir sobre o mundo e sobre nós mesmos.


Kariel Antonio Giarolo

Professor de Filosofia (ex-integrante do projeto)

FICHA TÉCNICA

Título original: Jeder für Sich und Gott Gegen Alle

Gênero: Drama

Direção: Werner Herzog

Elenco: Brigitte Mira, Elis Pilgrim, Enno Patalas, Gloria Doer, Hans Musau, Henry Van Luck, Michael Kroecher, Volker Prechtel, Walter Ladengast, Willy Semmelrogge

Duração: 101 minutos

Ano de produção: 1974

País de origem: Alemanha

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